Sonho na Pandemia de 2020/2021

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no whatsapp

Há alguns meses, tive um sonho que sinto ser relativo à pandemia da Covid-19. Guardei comigo seu impacto, pois muito me tocou e precisei de tempo para interpretar o que este presente do Inconsciente me traz. Não é de todo sonho que consigo lembrar com clareza, e este foi daqueles bastante lúcidos, com detalhes nítidos.

Compartilho agora porque estou há dias sentindo este impulso interior: “Escreva sobre o sonho, compartilhe sua compreensão”. E por mais singular e estreita que esta interpretação possa parecer para alguns, eu a coloco à serviço para que cada pessoa seja tocada, também, de forma singular e tenha suas próprias leituras e percepções.

O sonho começa comigo num lugar que eu sentia como meu quarto. Estou deitada em minha cama e, ao escutar alguém bater na porta, vou até ela para abrir. Ao fazer isso, vejo um homem chinês, me olhando sério, segurando um buquê de flores do campo, com pequenas margaridas brancas. Eu sorri, receptiva e, logo em seguida, me assustei com a assertividade com que ele adentrou no quarto.

Eu me sentia confusa entre a sinalização amigável das flores, e a pressão que ele exercia sobre mim, oferecendo o buquê um tanto à força. Conforme ele andava com passos firmes e impositivos em minha direção, eu sustentava meu olhar para ele e dava passos para trás. Eu sentia a pressão do seu movimento, o buquê entre nós dois, seu olhar sério, resoluto e obstinado… Eu procurava não confrontar, sorria um tanto constrangida e um tanto intrigada de querer compreender que flores seriam estas que ele queria me ofertar com tanta pressão.

Meu instinto, ainda assim, andava para trás, em compasso com ele, até chegar ao fundo do quarto, numa porta de vidro, virada para uma área de lazer interna da casa, com uma grande piscina. A porta se abriu e vi a piscina diante de mim. Saltei nela em busca de me afastar um pouco daquela pressão e buscar compreender o que ali estava acontecendo.

Então, de dentro da piscina, o vejo do lado de fora, não mais com o buquê nas mãos. Ele agora segurava uma pequena bebê em seus braços e sorria. Não era um bebê comum. Tinha feições e cores de um “mangá” (desenho japonês), e movia-se com surpreendente fluidez. O chinês sorria e levava-a para a beira da piscina, onde eu estava mergulhada e de pé, observando tudo. Meu instinto maternal já calculava algum perigo da bebê se afogar. Então, quando o chinês se abaixou para colocá-la na piscina, senti o impulso de proteção se acalmar, logo que percebi que a bebê se movia como uma lontra, com imensa fluidez, e sorria nadando em piruetas pela piscina imensa para seu tamanho. Lembro de me emocionar ao notar o relaxamento e o sorriso do chinês diante da alegria daquele pequeno ser.

Em torno da piscina, havia móveis de lazer e parecia ser um final de tarde, dadas as luzes baixas do local. Eu seguia olhando para aquela cena quando vi o chinês olhando para outra direção e mudando de expressão abruptamente, com grande susto e preocupação. Vi ele correr em direção a uma área fora da piscina, ao fundo e à direita de onde eu estava. Olhei para o lugar e notei uma banheira de bebê, montada sobre sua própria estrutura, num suporte alto, daqueles onde trocamos fraldas. Dentro da pequena banheira, uma adolescente, também com feições e cores de mangá, mal cabia ali dentro. A moça parecia desfalecer, com o corpo mole, correndo o risco de morrer afogada – mesmo na pequena quantidade de água no lugar onde ela estava.

Novamente me compadeci de ver o desvelo e preocupação do chinês, buscando com certo desespero prestar socorro àquela adolescente que se debatia na banheira tão pequena e desproporcional para o seu tamanho.

Acordei com esta sensação de angústia, ao mesmo tempo intrigada pelo sonho, como um todo. E fui, ao longo do tempo, revisitando as cenas e sensações que senti.

Hoje, meses após os acontecimentos, e em meio a uma pandemia global que impactou a vida de todos nós, algumas leituras do sonho têm se firmado dentro de mim:

A primeira delas é que eu abri a porta e deixei o chinês entrar. Junto com esta abertura e com a alegria de ver as flores, eu também o temia e respeitava. Não tive impulsos de grito ou terror, eu queria olhar para ele e compreender. Então, encontrei a solução de olhar e andar junto com ele, mantendo-me comigo mesma, conectada ao meu instinto de defesa, buscando uma saída para criar meu próprio espaço e observar com mais distância e perspectiva – objetivo que alcancei quando saí do quarto, fui para a área externa e pulei na piscina.

A pressão de receber ou não as flores, era algo que eu precisava de espaço e tempo para compreender. Afinal, quais eram suas intenções? Sim, havia a pressão de uma experiência um tanto compulsória a ser vivida. Algo que, em certa medida, eu abri a porta para entrar, e em certa medida, invadiu meu espaço e parecia querer impor algo sobre mim. Uma compreensão, talvez?

Fica a pergunta pois, em meio a esta necessidade de espaço, o amor, a alegria e a confiança do chinês na capacidade do bebê nadar me encantaram. A preocupação e o pânico dele em relação à adolescente também me sensibilizaram de alguma forma.

Algo novo também me chamou a atenção. Eu, que tenho uma personalidade costumeiramente tão voluntariosa e ativa, começo a mostrar um forte instinto de dar espaço, esperar, observar, analisar. Diante das duas cenas, não tive impulso real de interferir em nenhuma delas. Ambas constituíam algo que se mostrava para mim, e era isso que me cabia: simplesmente olhar.

Hoje, meses depois deste sonho e um ano após o impacto da pandemia sobre nossas vidas, olho de novo para o que se mostrou:

Ao analisar a segurança daquela bebê em, mesmo tão pequena, nadar com segurança, fluidez e alegria na grande piscina; e o desespero daquela adolescente, tão grande para aquela banheira, correr riscos e se debater em desespero, me vem a clareza das Ordens do Amor, observadas e reveladas por Bert Hellinger.

Quando estou no meu lugar de pequena, mesmo em meio a uma piscina tão grande, fluo em segurança e alegria.

Quando me coloco como grande, num lugar já superado, que não me cabe mais, fico fraca e ponho-me em risco, conectada a pulsões de desistência e morte.

Qual o nosso tamanho em meio a circunstâncias de pressão tão maiores do que nós mesmos?

Quando somos grandes perante nós mesmos, em meio ao Todo que nos abarca e nos circunda, com Amor e Segurança?

Em que lugar é seguro ser pequena?

Em que lugar é seguro ser grande?

Qual é o lugar correspondente e seguro em cada fase do ser?

Perguntas que abrem perspectivas, reflexões e caminhos que, intuo, podem levar o indivíduo para cada vez mais perto do terreno-trono a que cada um tem direito de ocupar e chamar: “o meu lugar”.

Nele, sinto que todos podemos fluir em segurança e sintonia com as Forças Maiores que atuam sobre nós. Que a consciência e a humildade de querer somente o que é meu, o meu lugar, e nele ser o melhor de mim, seja a forma mais tranquila e segura de nadar e boiar sobre as ondas que esta Pandemia tem trazido para as nossas vidas.

(Daniela Migliari, 6 de março de 2021).

Ilustração, A Grande Onda de Kanagawa, mais conhecida simplesmente como “A Onda” – uma famosa xilogravura do mestre japonês Katsushika Hokusai, especialista em ukiyo-e, publicada em 1830 ou 1831. 

Assuntos relacionados
(navegue por eles também)